Um conto de fadas para adultos escrito pela irlandesa Maria Regina Roche
Os Filhos da Abadia, ou Oscar e Amanda, é uma obra-prima que, na época de seu lançamento, em 1796, rivalizou com a também obra-prima de Radcliffe, Os Mistérios de Udolpho, em popularidade, vendendo muito mais do que este último.
Trata-se do drama de Oscar e Amanda, os herdeiros de uma abadia, que tem início em um passado remoto, quando o conde de Dunreath desejava um herdeiro, mas lady Dunreath tinha dificuldades para conceber.
O livro não traz as histórias de amor dos dois irmãos, a de Oscar por Adélia e a sina da bela Amanda, que por onde passa desperta inveja nas mulheres e paixão nos homens, que querem se aproveitar de sua inocência. Fugindo de um deles, Amanda vai para a casa de sua ama de leite, que reside no interior da Inglaterra. Lá, conhece o gentil lorde Mortimer, mas a condição social de Amanda será o primeiro de uma série de empecilhos interpostos entre os dois. Lutando para manter a dignidade e a honra, Amanda terá muitos percalços para uma jovem criatura tão inocente, mas com uma fé inabalável na Providência. Mas, quando lorde Mortimer retira dela sua confiança, quando o conde de Cherbury exige dela que renuncie à sua felicidade, Amanda acredita que tudo está acabado.
VAMOS VOLTAR AO INÍCIO DE TUDO
Lá no passado, sentindo-se sozinha, lady Dunreath decide adotar uma órfã, a quem dedica todo o seu amor. Pouco tempo depois ele fica grávida e concebe outra menina, a quem dá o nome de Malvina. Aqui tem início uma comovente história de amor, ódio e traição. Uma disputa pela herança do velho conde Dunreath.
Muitos anos depois, chega à abadia um jovem militar chamado Fitzalan. As filhas do conde caem logo enamoradas dele, mas é Malvina quem ganha seu coração. Prevendo a oposição de seu pai a um casamento com um homem sem fortuna, Malvina decide casar-se com Fitzalan em segredo, para a alegria da madrasta, pois, quando a união é descoberta, o conde decide deserdar Malvina. O casal Fitzalan concebe dois filhos: Oscar e Amanda. E é a história deles que traz Os Filhos da Abadia.
QUEM FOI MARIA REGINA ROCHE?
Embora sua obra tenha sido referência para Jane Austen, a mais conhecida autora inglesa, a escritora irlandesa Maria Regina Dalton – nome de solteira – (1764–1845), conhecida como Maria Regina Roche – nome de casada –, estava na obscuridade total no Brasil, pelo menos em nosso atual século e no posterior também. Para quem ficou surpreso com a afirmação de que Roche foi referência para Austen, ela citou Os Filhos da Abadia em seu livro Emma. No livro, surpresa também é expressa, em um diálogo, quando Emma, personagem principal, acha estranho que Mr. Martin nunca tenha ouvido falar do livro de Maria Regina Roche.
No Brasil, no século XIX, a autora irlandesa era conhecida pelo, nada mais nada menos, notável José de Alencar e, muito possivelmente, foi uma referência para o autor de Senhora, um dos clássicos mais amados no Brasil. Segundo a pesquisadora em estudos literários e professora de literatura, Luiza Rosiete Gondin Cavalcante (criadora da Biblioteca Alencariana), há claras comprovações de que José de Alencar leu a tradução portuguesa, intitulada Oscar e Amanda, os nomes dos dois irmãos que, na trama, são os filhos da Abadia, um castelo pertencente a um conde na Escócia. “Alencar leu sim Os filhos da Abadia, ele reconstrói textualmente referências a essa leitura em Como e Porque Sou Romancista, sua autobiografia intelectual, escrita em 1873 e publicada por seu filho, Mário de Alencar, em 1899. É muito interessante notar em sua escrita, como se deu o contexto dessa leitura-descoberta: Alencar criança, alçou o posto, segundo suas próprias palavras, de ‘leitor oficial da família’, especificamente para as mulheres (mãe e outras parentas), enquanto seu pai e outros homens articulavam estratégias e ações políticas em outro cômodo da casa. Percebe-se que a apreciação do autor pelo romance de Maria Regina Roche, bem como pela obra de Elizabeth Helme,[1] está ligada à figura amorosa, formadora e incentivadora da mãe, e a todo um contexto familiar de aprendizado associado a ludicidade, aconchego e partilha. A impressão acerca do texto de Roche deve ter sido forte em Alencar, já que mereceu a rememoração de um dos momentos emocionantes de sua leitura, bem como da reação das ouvintes”, conta Rosiete.
Na biografia do autor, O inimigo do Rei: uma biografia de José de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil,[2] escrita pelo jornalista Lira Neto, há a descrição exata do momento que Luiza Rosiete mencionou, leitura essa feita por Cazuza, como José de Alencar era chamado na família.
“Para ganhar os aplausos da mãe, Cazuza caprichava na leitura em voz alta, interpretando os diálogos com toda dramaticidade que os textos permitiam. ‘Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído pela história, lia com expressão um dos livros mais comoventes de nossa biblioteca’. Tratava-se, no caso, do lacrimoso Oscar e Amanda: amor e virtudes triunfantes, de Maria Regina Roche. Entusiasmado com a própria performance, o garoto foi contagiado pelo choro incontido das mulheres ao redor. ‘Com a voz afogada pela comoção, as vistas embaçadas pelas lágrimas, eu, cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas’. Exatamente neste momento, sem saber o que estava se passando, o padre Carlos Peixoto de Alencar […] assomou à porta da sala e, apreensivo, indagou: O que aconteceu? Alguma desgraça? As senhoras continuaram a esconder os rostos sob o lenço, até que o próprio Cazuza tomou fôlego e conseguiu responder, fala entrecortada por soluços, o dedo apontado para o livro sobre o colo […]”. Na sequência, o rapazinho Alencar mencionará ao padre a morte de um personagem coadjuvante, porém, importante à trama. Uma emoção que marcou o escritor brasileiro para sempre, pois livros que emocionam jamais saem da memória, tenha o leitor a idade que tiver.
NFLUÊNCIA PARA JANE AUSTEN
Uma autora que foi a responsável por influenciar autores no mundo todo – inclusive no Brasil, como mostramos –, Maria Regina nasceu em Waterford, County Wexford, na Irlanda do século XVIII. Era filha do capitão Blundell Dalton, oficial do Quadragésimo Regimento de Sua Majestade. Era uma romancista gótica, que concorria com Ann Radcliffe (1764–1823). Embora seja considerada por muitos literatos como “menor” que Radcliffe, o estilo de escrita de ambas é muito similar. Os Filhos da Abadia, ou Oscar e Amanda, é uma obra-prima que, na época de seu lançamento, em 1796, rivalizou com a também obra-prima de Radcliffe, Os Mistérios de Udolpho,em popularidade, vendendo muito mais do que este último. Comparando as duas obras, Os Filhos da Abadia é um livro com teor mais romântico, enquanto o enredo de Os Mistérios de Udolpho, embora também genial, não obstante tenha muito romance, acaba indo mais para o lado do mistério quase sobrenatural.
O livro da autora irlandesa trata dos dramas de dois órfãos injustiçados e suas lutas para sobreviver em meio à miséria e à perseguição, sobretudo, viver junto às pessoas cujas almas foram marcadas. Traz não somente os dramas românticos dos dois irmãos e personagens principais, mas a autora retrata brilhantemente diversas tramas paralelas, fazendo de Os Filhos da Abadia uma obra-prima do Romantismo.
Não há como negar que o drama permeia Os Filhos da Abadia. Drama esse que esteve presente na vida real da autora, marcada por sofrimentos.
A família Dalton era descendente de uma antiga família irlandesa, e antigas famílias, geralmente, possuíam muitas terras. Mostrando muito cedo as qualidades de uma romancista – uma mente criativa e em constante elaboração de histórias –, como constatamos nas palavras da própria autora, quando mais tarde escreveu sobre sua infância: “os livros foram minha primeira paixão. O castigo infligido a mim, quando eu fazia qualquer coisa para desagradar, era mandar tirá-los de mim. Antes que eu pudesse manusear uma pena, esforcei-me por dar expressão ao funcionamento da minha mente por escrito”.
Mas seus primeiros trabalhos vieram quando sua família se mudou para Dublin. Nesse período, ela ainda não tinha sido moída pelos problemas da vida e escreveu seu primeiro romance, O Vigário de Lansdowne, em 1789, “uma história alegre, em que seu herói, o capitão Manning, era um jovem oficial do exército que exalava uma sensibilidade requintada, possuía uma honra exaltada e uma terna benevolência”. É considerado um trabalho ainda imaturo, que tem início com uma vaca impedindo o progresso de duas jovens que são resgatadas por dois oficiais. Seu segundo romance foi A Donzela de Hamlet, lançado em 1793, cujo enredo foi considerado maçante e desinteressante, mas é notável pela profecia de um talento que viria a eclodir mais tarde. Estes dois primeiros romances foram publicados com o nome de solteira da autora. A essa altura da vida, Maria Regina não sabia o quão sombrio seria seu futuro.
CASAMENTO
Em 1794, casou-se com Ambrose Roche e o casal foi morar na Inglaterra. Mas foi um casamento assolado por problemas de saúde e pobreza extrema. Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida dos Roche em Londres. No entanto, depois do quinto romance, Visita Noturna, lançado em1800, ela parou de escrever por longos anos. Em 1802, Ambrose Roche foi à falência.
Maria Regina havia herdado um pequeno patrimônio de seu pai, mas foi enganada por John Boswell, um advogado sem escrúpulos, que os levou à pobreza e, às vezes, à beira da fome, desgastados por litígios e drenados por honorários advocatícios. Na época em que a família Roche enfrentou problemas financeiros, o casal, que morava no alojamento 6, na Stangate Street, Westminster, por pouco não fora expulso por falta do pagamento do aluguel. Em 1825, Ambrose Roche sofreu um grave AVC. De acordo com J. Wheeler, foi o médico quem escreveu em nome do casal para a Royal Literary Society (fundo beneficente que dava assistência a escritores britânicos publicados em dificuldades financeiras) e que socorreu os Roche. Maria Regina deu “atenção afetuosa e assídua” ao esposo e, enquanto Ambrose esteve doente, nunca foi para a cama, mantendo-se sentada em uma cadeira ao seu lado.
Maria Regina permaneceu uma esposa devotada, até que seu marido morreu, em 1829. Sofrimento suportado por suas esperanças e expectativas, embora repetidamente destruídas. Todavia, transformou todo esse sofrimento em obras-primas, nas quais o leitor sente e sofre junto com os personagens cenas tão reais, que é possível sentir dor, raiva, ódio, amor, como se estivesse entre as páginas dos livros.
Por causa desses problemas, ela não escreveu novamente até 1807. Depois desse período, escreveu ainda mais onze romances, a maioria deles ambientada na Irlanda rural, mas nenhum se igualou aos sucessos anteriores, Os Filhos da Abadia, de 1796, e Clermont, de 1798. Quanto a estes, ambos foram traduzidos para o francês e o espanhol em sucessivas edições.
Atualmente, na literatura inglesa, Maria Regina Roche não é lembrada como uma suplicante empobrecida envolvida em casos jurídicos irremediavelmente emaranhados, mas como uma romancista de considerável reputação em seu tempo. No total, Maria Roche escreveu quinze romances, com mais duas atribuições, quase todos publicados por William Lane, seguido por A. K. Newman, da popular Minerva Press. A maior parte de seu trabalho é romântica, sentimental, como convém a um leitor de Ann Radcliffe. Contém episódios góticos, ilustrados por belas paisagens.
Uma construção em ruína não era apenas um edifício para Maria Roche, tinha que ser remota, açoitada pelo vento, o qual fazia um ruído oco, e assombrada por gemidos, que poderiam muito bem ser confundidos com suspiros e angustiadas lamentações; uma escada em ruína descia para um salão, acima do qual tudo parecia envolvido em hera, mistério e escuridão; enquanto nas paredes verdes e viscosas, a luz tremulante e incerta lançava sombras, cada uma mais fantástica que a outra. Heroínas de sensibilidade aguda eram perseguidas por vilões inescrupulosos; as florestas eram escuras e ameaçadoras; e as ruínas eram habitadas por espectros, visíveis apenas na imaginação da heroína. Os heróis eram bonitos, geralmente aristocráticos; o amor e o casamento invariavelmente triunfavam no final, mas apenas depois de muitos infortúnios e mal-entendidos.
Levando em conta a triste vida da autora, passamos a entender passagens como estas em Os Filhos da Abadia: “felicidade raramente é alcançada sem alguma dor” e “quando insultado pela maldade ou oprimido pela crueldade, o coração pode assumir uma rigidez muito diferente da sua natureza!” Talvez ela estivesse se referindo ao que sofreu com as críticas ao seu livro Clermont, sua única tentativa completa de nadar em águas totalmente góticas. Tem um tom decididamente mais escuro do que qualquer outra coisa que ela escreveu. E Clermont foi considerado um dos romances horríveis, satirizados por Jane Austen em seu romance A Abadia de Northanger.
Todavia, seu mais popular romance, Os Filhos da Abadia, alcançou sua 10ª edição em 1825, ainda estava em publicação em 1882 e é lido até hoje.
Os Filhos da Abadia, exclusivo para assinantes do www.clubedeleitorespedrazul.com.br, é um romance de sensibilidade com episódios góticos. O enredo é complicado e diz respeito à história de Amanda, uma garota virtuosa que possui uma alma de requintada sensibilidade. Ela é perseguida pelo coronel Belgrave, que imediatamente a marcou como sua presa. Um segundo enredo, em paralelo, conta a história de seu irmão, Oscar. Como pano de fundo, estão edifícios em ruínas, capelas, conventos, castelos, chalés empobrecidos e muita natureza. Fortitude e, acima de tudo, a fé, a crença na moralidade prevalece como em todos os romances de Roche, que também enfatizam a posição precária das mulheres em um ambiente dominado pelos homens.
Os últimos seis romances de Maria Regina Roche refletem seu retorno à Irlanda; ocasião em que ela lidou com algumas das questões irlandesas do dia a dia, como, por exemplo, as dificuldades que os proprietários ausentes criavam, um tema que preocupou também sua contemporânea mais famosa, Maria Edgeworth, em seu romance de 1812, O Ausente. A pobreza da Irlanda, e aquela vivida pela própria Roche, é refletida em sua obra O Menino da Casa de Campo Munste, embora não sem humor. Durante o desjejum, o porco entra, e, depois de tudo, os galos e as galinhas, com toda uma tribo de gansos e outros bichos, que continuam sua algazarra, correndo e esvoaçando, junto com o miado do gato, quando a bicharada se aproximava dele, e o rosnado do cachorro, quando eles o perturbavam, e tudo isso fez o lugar parecer com o hospício de Bedlam.
Maria Regina Roche pode ser considerada uma ponte entre o romantismo gótico e a dura rotina da vida da classe trabalhadora que leva ao romances vitorianos, Charles Dickens e Elizabeth Gaskell, por exemplo. Apesar dos muitos comentários adversos feitos sobre seu trabalho, há muito o que apreciar em seus escritos. Amantes da ficção do século XVIII, com certeza, vão apreciar Os Filhos da Abadia.
Após a morte do marido em 1829, ela voltou para Waterford, sua terra natal. No outono de 1831, retornou para Dublin, na esperança de resolver seus complicados assuntos jurídicos no tribunal da Chancelaria. O desfecho não foi registrado, mas sabe-se que seus últimos anos de vida foram passados em Waterford, onde morreu aos 81 anos, em 17 de maio de 1845. Apesar de suas lutas, sua fé cristã a apoiou durante os anos de tribulações. O obituário da Gentleman’s Magazine, em julho de 1845, referia-se a ela como “distinta escritora, que se aposentou do mundo e o mundo a esqueceu. Mas muitos corações jovens, agora velhos, devem se lembrar do efeito de suas composições graciosas e tocantes sobre eles”.
Trabalhos publicados:
O Vigário de Lansdowne: ou Country Quarters (1789); A Donzela do Hamlet (1793); Os filhos da Abadia (1796); Clermont (1798)
Visita noturna (1800); O Vicariato de Alvandown (1807); O filho Descartado: ou Assombro dos Bandidos (1807); As Casas de Osma e Almeria: ou Convento de Santo Ildefonso (1810); O Mosteiro de São Columb: ou A Expiação (1814);
Trecothick Bower: ou A Dama do País do Oeste (1814); O Menino da Casa de Campo Munster: (1820); Noivas de Dunamore e Perdas e Ganhos (1823); A Tradição do Castelo: ou Cenas na Ilha Esmeralda (1824); A capela do Castelo (1825)
Contraste (1828); O Quadro da Freira (1834).[3]
[1] Elizabeth Helme foi uma romancista e tradutora inglesa do século XVIII. Nasceu no condado de Durham, mas seu nome de solteira não é conhecido. A família mudou-se para Londres, onde conheceu William Helme, que se tornou seu marido. (N.E.)
[2] Editora Globo, 2006, p. 59- 60. (N.E.)
[3] A Bibliografia da introdução encontra-se completa no final desta edição.