A VIDA DE CHARLOTTE BRONTË

A Vida de Charlotte Brontë

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Por Chirlei Wandekoken

A Vida de Charlotte Brontë, biografia, publicada em 1857 por Elizabeth Gaskell, recebeu imediata aclamação popular no Reino Unido, e continua sendo o estudo mais significativo da enigmática autora que, ao compor suas obras, deu a elas um cunho autobiográfico. Este livro relata a vida de Charlotte Brontë desde sua isolada infância, passa por seus anos com o rótulo de “solteirona”, descreve detalhadamente sua carreira, seu casamento aos 38 anos, e sua morte menos de um ano depois.

Charlotte certa vez escreveu: “Perder o que temos de mais querido no mundo produz um efeito em nosso caráter, e passamos a procurar algo em que possamos nos apoiar; e quando encontramos, agarramo-nos a isso fortemente!” E essas palavras resumem o que vou escrever. Não é novidade para nenhum curioso da vida de Charlotte, que a biografia A Vida de Charlotte Brontë, escrita por Elizabeth Gaskell, suprimiu aquilo que ela acreditou que desabonaria a amiga, humilharia Patrick Brontë, o pai da autora; o marido, Arthur Bell Nicholls, e, sobretudo, degradaria a imagem de Charlotte Brontë como escritora.

Em nenhum momento faço uma crítica à postura de Gaskell, pois no lugar dela eu teria feito o mesmo. Seria uma agressão ao último dos Brontës, ao viúvo enlutado, divulgar cartas íntimas de Charlotte para outro homem, fatos de um período conturbado em que vivera a autora em sua juventude. Àquela época, o gesto seria como matá-la duas vezes. A biografia de Gaskell, embora uma descrição das cartas de Charlotte para Ellen Nussey (sua melhor amiga), algumas “censuradas”, é valiosa em nos mostrar a intimidade de uma das autoras mais admiradas da era vitoriana.

O que ela nos contou é verdadeiro: as tristezas, as perdas, momentos de depressão, a personalidade forte e o caráter determinado de Charlotte, o dia a dia em Haworth, sua carreira, etc., tudo isso foi verdade. Não houve mentira ou distorção, apenas justa omissão. Um dos fatos omitidos tinha ligação com o próprio editor que publicou a biografia, George Smith, por quem Charlotte Brontë teve um “passageiro” interesse certa época, exatamente como o interesse de Lucy Snowe por John Graham em Villette.

Smith ganhou um personagem inspirado nele em Villette, o médico John Graham

Digo passageiro se comparado ao seu interesse por Constantin Héger, que perdurou por longos anos. No próprio Villette, Charlotte, na pessoa de sua personagem Lucy Snowe, escolhe continuar amando Paul Emanuel (Constantin Héger) e dá outro amor a John Graham (Paulina). Como já dissemos em alguma das centenas de notas de rodapé ao longo da biografia, o Dr. John de Villette foi um personagem
inspirado em George Smith, o que não dissemos é que foi a pedido dele.

Muito provavelmente o pedido foi feito em um momento de descontração em uma das visitas da autora à casa de Mrs. Smith, Elizabeth Murray Smith (1797–1878), mãe de George Smith, inspiração para Madame Bretton de Villette. Jovem, bonito e extremamente bem-educado, George Smith era diferente de tudo que Charlotte conhecera até então.

Em Londres, então, notavelmente ela se sentiu atraída pelo charme de seu editor, e uma paixão menos pungente do que a que sentiu por seu ex-professor apossou-se dela. Quando o irmão e as irmãs morreram, a dor da perda, com o coração partido pela frieza e proibição de escrever para Héger, a promessa de um relacionamento com George Smith veio como uma possível tábua de salvação para uma época de pura desolação.

Como dissera ela: “É um decreto dos Céus que, quando perdemos o prazer por algo, outro vem para substituí-lo!” Era como uma fuga da miséria daquele lar cheio de perdas. “Os sonhos românticos de infância de Charlotte foram reacendidos, mas seus próprios sentimentos de inferioridade a impediam de ter uma chance de felicidade. Sempre se sentindo de alguma forma indigna de George e, sabendo que não podia arriscar outro coração partido, retirou-se para o presbitério de seu pai”, observou um de seus biógrafos modernos em um texto extraído.

No lúgubre e solitário presbitério, ela foi consumida pela tristeza e acometida pela doença, grande parte dela psicossomática. O breve flerte de Charlotte com a capital e seu editor terminou e, depois de rejeitar uma terceira proposta de um dos colegas de George, James Taylor, parecia que ela estava destinada a permanecer solteira.

Totalmente compreensível que Gaskell tenha escondido esse fato, visto que George Smith era o editor que publicaria a biografia dela e uma figura extremamente conhecida em Londres. Mas o fato mais marcante da vida de Charlotte Brontë foi a paixão da jovem por Constantin Héger, um homem casado. Com relação às omissões, ambos os fatos teriam causado muitos estragos à reputação de Charlotte na época.

Hoje, entretanto, tendo em vista a evolução dos costumes, sobretudo um olhar diferente para a hipocrisia de se apontar o defeito do outro e “sentar-se” sobre o nosso, os fatos mostram um retrato vívido de uma mulher normal, um ser humano falho como nós, uma talentosa escritora que transformou em romances seculares, dores que partiram seu coração, rasgaram sua alma, mortificaram seu espírito.

Desconheço na literatura mundial vida mais trágica que a de Charlotte Brontë. Meu único consolo é que eu, de fato, acredito que na sua maturidade, ela foi feliz com Nicholls, por pouco tempo, por uma gestação apenas, mas os nove meses que ela viveu com ele foram um bálsamo para sua alma solitária.
“Arthur Nicholls não era nem arrojado nem ‘grosseiramente’ bonito, mas o curador se importava profundamente com ela, e ela finalmente percebeu que a companhia era mais importante do que a paixão idealista que ela passara a vida buscando”.

Arthur Nicholls não era nem arrojado nem ‘grosseiramente’ bonito

Se ela não o amou com um amor apaixonado que concedera a Héger, amou-o com um amor sadio, sobretudo, retribuído, pois Arthur a amava de verdade. Amara por muitos anos antes de revelar a ela seu amor e pedi-la em casamento.

Lamentavelmente, ele ficou muito mais tempo amando-a à distância, em segredo, que de fato com ela.
Discordo de algumas pessoas que falaram mal de Nicholls após a morte de Brontë, entre elas a amiga de Charlotte, Ellen Nussey – talvez por ciúmes e má interpretação de alguma carta de Charlotte –, e até a própria Elizabeth Gaskell.

Embora ela o tenha elogiado bastante em sua biografia, depois expressou certo pesar. O interessante é que Gaskell aconselhou Charlotte para que se casasse com Nicholls, mas em algum momento após a morte da amiga, segundo alguns biógrafos modernos, ela criticou Nicholls, imagino que devido ao descontentamento do viúvo com relação a alguma revelação feita por Gaskell. Mas isso é especulação minha, não há comprovação.

Mas ninguém pode negar que Arthur Bell Nicholls era um homem honrado e um bom. Nenhuma pessoa que se preocupa em levar um cão da Inglaterra à Irlanda, apenas para não o abandonar sozinho em Haworth, pode ter tido uma alma senão doce e generosa.

Após a morte de sua esposa, Arthur ficou com o reverendo Patrick Brontë para cuidar dele por longos e solitários seis anos. Martha Brown, a fiel serva, na época com 26 anos, permaneceu com os dois, e suas irmãs Eliza e Tabitha a ajudaram a cuidar da casa. Somente após a morte do último Brontë foi que Nicholls empacotou seus pertences e todas as suas lembranças de Charlotte, e retornou à Irlanda levando Platão, o último cachorro de Patrick.

“Em Banagher (Irlanda), a Royal School estava sendo administrada pelo segundo filho do Dr. Bell, de nome James, que assumira o controle depois da morte do tio de Arthur”. Então, como James estava morando em Cuba House, a tia de Arthur foi morar em uma pequena casa no topo da colina da pequena cidade, Hill House, e levou com ela sua filha, Mary Anna. Foi para lá que Arthur voltou com Platão, juntando-se à tia e à prima.

Ele se tornou um pequeno agricultor, abandonando completamente a Igreja. Quando ele tinha quarenta e três anos, e Mary Anna trinta e dois, eles decidiram se casar. “Ela sempre amara seu primo, e ele gostava e a respeitava. Eles se casaram em 1864, e a cerimônia foi realizada pelo reverendo Joseph Bell, irmão de Mary Anna e primo de Arthur. Parecia ser mais um casamento por conveniência, uma amizade do que qualquer outra coisa”. Não houve filhos do casamento.

Arthur morreu em 1906, aos oitenta e oito anos, e Mary Anna em 1915, aos oitenta e cinco. Ambos estão enterrados do outro lado da rua da Hill House, no cemitério de St. Paul’s. A tia de Arthur, mãe de Mary Anna, viveu até os 101 anos, “uma maravilhosa velhinha”, e morreu em 1902.
Conta-se que Arthur nunca se recuperou da morte de Charlotte. Devido ao descrito acima, o leitor pode entender as razões que levaram Gaskell a omitir o episódio marcante na vida de Charlotte, sua paixão por Héger, que a autora enterrou em Villette. Gaskell sabia o quanto Nicholls amava Charlotte.

Antes de falar do fato que norteou toda a vida literária de Charlotte Brontë, mencionarei o romance inacabado dela, Emma (este fragmento está traduzido e encontra-se junto à biografia publicada pela Pedrazul). Na verdade, um fragmento de vinte páginas de uma história que, após a morte de Charlotte, George Smith se apossou dele e o publicou no Cornhill Magazine, em 1860. O manuscrito original, na verdade, foi escrito sete meses antes do casamento de Charlotte, e consiste em dois capítulos descrevendo a chegada de uma jovem aparentemente rica, Matilda Fitzgibbon, em uma cara escola particular. 

Parece que a identidade dela era falsa e que as mensalidades da escola não foram pagas. A moça era incapaz de responder a quaisquer perguntas sobre sua verdadeira identidade. A escritora e jornalista irlandesa Clare Boylan (1948–1916) deu sequência ao manuscrito e concluiu Emma Brown, lançado em A novela foi vista favoravelmente, mas não foi considerada uma continuação fiel do estilo e da voz de Brontë. “Finalmente, fiquei de frente com o último romance de Charlotte Brontë, ao qual ela tinha dado o título de Emma. Fiquei levemente admirada ao descobrir que a história tinha uma narradora, uma viúva calma, com quase 40 anos.

Ocorreu-me então que o narrador tinha a mesma idade de Charlotte quando ela começou o livro”, disse Boylan. Não sei se estou sendo fantasiosa, mas acompanhando o raciocínio e a carreira autobiográfica de Charlotte Brontë, me ocorreu que a “viúva” que narrava Emma era ela após a “morte” figurativa de Paul Emanuel (Constantin) em Villette. Verdade ou fantasia, concluo este tópico com o obituário de Boylan Telegraph, que publicou “que a obra (Emma Brown) transmitia pouco do profundo quadro moral e teológico que sustentava os escritos de Charlotte Brontë”.

Voltemos agora aos fatos omitidos por Gaskell em A Vida de Charlotte Brontë e aos motivos na visão de alguns pesquisadores. A primeira edição da biografia foi publicada em 1857 por Smith, Elder & Co., a mesma editora que publicara Jane Eyre, Shirley e Villette. Como já sabemos, a fonte de Gaskell para escrever a biografia foram as centenas de cartas enviadas por Charlotte à sua melhor amiga ao longo da vida, Ellen Nussey, e outros depoimentos: de Gaskell mesma, pois ela e Charlotte eram amigas; de Mary Taylor, de Miss Wooler, e outros que conviveram com Charlotte, entre eles as empregadas do presbitério, vizinhos e autores. Gaskell teve que lidar com questões bastante delicadas durante a escrita da biografia e, principalmente, depois da primeira edição publicada.

A principal questão após a publicação foi sua descrição da Escola das Filhas do Clero (citada por Charlotte em Jane Eyre), frequentada por Charlotte e suas irmãs. O reverendo William Carus Wilson, o fundador da escola, publicou um texto desmentindo a biografia, com o título “Uma refutação das declarações em A vida de Charlotte Brontë a respeito da Casterton Clergy Daughters School quando em Cowan Bridge”, e processou Gaskell. Por causa disso, a segunda edição foi totalmente mutilada.

Casterton Clergy Daughters School

A edição disponível para tradução foi essa “mutilada”, motivo pelo qual a edição da Editora Pedrazul tem muitas notas de rodapé, visando que o leitor entenda todo o contexto. Mutilada ou não, a obra de Gaskell continua sendo uma importante fonte de pesquisa sobre a vida de Charlotte Brontë. Outro fato omitido por Gaskell foi o ligado a um novo assistente de curadoria de Haworth, chamado William Weightman.

Conta-se que Charlotte foi uma das muitas mulheres que se apaixonaram pelos encantos e pela boa aparência dele, mas William gostava de Anne Brontë. A princípio, ela fala brilhantemente dele em suas cartas e passa horas pintando seu retrato e sendo provocada por isso. Mas então, de repente, essa atitude muda.

Ela escreveu: “Apesar de todos os truques, artimanhas e falta de sinceridade do amor, o cavalheiro não tem páreo por 30 quilômetros. Ele conseguiria convencer toda mulher com menos de 30 anos, que está desesperadamente apaixonada por ele”. Gaskell não menciona uma única vez esse interesse de Charlotte por William Weightman. O fato dessa omissão, segundo alguns biógrafos, foi uma disputa entre as irmãs, Charlotte e Anne, pelo amor do rapaz. Conta-se que se Anne tivesse vivido, provavelmente teria sido pedida em casamento por William.

Alguns fãs de Anne Brontë (não é uma crítica a Anne, pois eu sou uma grande fã da pequena Brontë) acusam Charlotte de “trapacear” pela atenção de William. Em defesa de Charlotte, desde os tempos bíblicos, irmãs competem pela atenção de um homem. A exemplo, Lia e Raquel e Jacó, e isso não é notavelmente um pecado, apenas um ser humano de posse de suas fraquezas e falhas. Charlotte amava Anne de todo o seu coração e cuidou dela até o fim.

A paixão de Charlotte por Constantin Héger

A família de Constantin Héger, em 1846, por Ange Francois

Entretanto, o segredo guardado com toda cautela do mundo por Gaskell, e que ela teve que ter jogo de cintura e criatividade em alguns tópicos na biografia para não o mencionar, foi a paixão de Charlotte por Constantin Héger. Um material que eu li narra a estupefação de Elizabeth Gaskell ao ler as cartas de Charlotte para seu ex-professor. Parece que ela virou para George Smith e perguntou o que ela deveria fazer com aquilo. Estava claro para Gaskell que sua amiga havia se apaixonado irremediavelmente pelo professor carismático (e casado) do pensionato de Bruxelas.

Claire Harman, uma das biógrafas mais recentes de Charlotte Brontë, autora de Charlotte Brontë, um Coração Ardente, trata esse episódio como a experiência mais importante da vida de Brontë. Ela cita as cartas que Charlotte escreveu para Héger entre 1844 e 1845 como “documentos comoventes”, possivelmente “os exemplos mais contundentes de amor não solicitado e não correspondido de toda a literatura”. Em um trecho da biografia, Harman observa como Brontë ansiava desesperadamente por uma “união de almas, um compartilhamento profundo de ideias, silencioso e envolvente”.

No entanto, segundo Harman, em sua obsessão por Héger, Charlotte se comportou “mais como um incubus do que como uma amiga” e esperava em vão pelas respostas dele. “A vida se tornou muito vazia”, escreveu, “e a esperança se mostrou um traidor estranho”. Mas onde a biografia de Harman realmente se destaca é quando ela mostra como a arte imitava a vida. “As heroínas de Charlotte Brontë são todas sem mãe, à deriva e famintas pelo amor dos pais”. Segundo Harman, Constantin Héger foi a inspiração para Rochester em Jane Eyre, Louis Moore em Shirley, e Paul Emanuel em Villette.

Constantin Héger foi a inspiração para Paul Emanuel de Villette

A homônima Shirley era “uma versão fantasiosa” de Emily ou, como Charlotte disse a Gaskell, quem seria sua irmã “se ela tivesse sido colocada em saúde e prosperidade”. Charlotte Brontë recebeu mais de uma oferta de casamento, como vimos, mas as rejeitou com uma autodepreciação: “Você não me conhece.

Eu não sou um indivíduo sério, de cabeça fria, que você supõe”, disse ela a um de seus pretendentes. Então, quem foi Charlotte Brontë? Por que ela se culpava tanto? Será que a religião, em vez de consolo, lhe trazia culpa?

Héger foi a inspiração para Mr. Rochester em Jane Eyre e Louis Moore em Shirley

Pesquisador europeu

Eu tive a oportunidade de trocar alguns e-mails sobre Charlotte Brontë com o pesquisador europeu Eric Ruijssenaars, autor de Charlotte Brontë’s Promised Land e The Pensionnat Revisited. Eric é um pesquisador da vida das Brontës há mais de trinta anos e tem uma opinião sobre o motivo pelo qual Elizabeth Gaskell, na biografia de Charlotte Brontë, omitiu a paixão dela por Héger. Ele me disse que há provas de que Gaskell visitou Héger em Bruxelas, que leu as cartas restauradas por sua esposa (pois Héger as tinha rasgado e jogado no lixo). Sobretudo, Ruijssenaars afirmou que Patrick Brontë e Arthur Bell Nicholls nada sabiam do ocorrido. “O pai e o marido de Charlotte não influenciaram Mrs. Gaskell no que escrever, isso é um fato.

O irmão Branwell, o reverendo Patrick Brontë e Arthur Bell Nicholls foram três homens que sempre tiveram uma má reputação, em parte graças a Mrs. Gaskell. Eles foram os bodes expiatórios. Mrs. Gaskell, na biografia, cita seletivamente partes das cartas. Ela fez tudo o que podia para não parecer que Charlotte tinha uma paixão por Héger. Ela tentou fazer de Charlotte uma santa. E, é claro que a revelação dessa paixão teria danificado a reputação de Charlotte”, disse Ruijssenaars. 

Como Harman, Eric Ruijssenaars afirma que em todo trabalho de pesquisa detalhado da vida das Brontës em Bruxelas, as respostas levam a um só lugar-comum: Charlotte se inspirou nos locais nos arredores de Bruxelas para escrever Villette e O Professor. “Também fiz um levantamento da vida cultural na cidade no período de 1842-1843, na qual Charlotte também se inspirou em vários trechos da obra, incluindo a identificação das pinturas mencionadas em Villette, além, é lógico, de tudo que envolveu Monsieur Constantin Héger. Tudo isso revelou que Villette, de fato, é uma obra totalmente autobiográfica.

Villette é a reprodução da vida de Charlotte Brontë. Posso afirmar que Charlotte descreveu com precisão o antigo bairro onde ficava o pensionato. Tem uma parte em Villette que Lucy Snowe, desesperada, entra numa igreja e se confessa com o padre Silas. Essa confissão é autobiográfica. No livro, no capítulo Cleópatra, ela também vai ver uma exposição.

Ela, de fato, foi para uma exposição de fotografias em Bruxelas. O passeio que ela fez com Monsieur Paul Emanuel também foi real; e a paixão de Lucy por ele, lógico, foi a paixão dela por Monsieur Constantin Héger, além de centenas de outros fatos. Constantin Héger é o retrato de Paul Emanuel de Villette. Eles são as mesmas pessoas”, afirmou Ruijssenaars. 

Há um trecho da carta de Charlotte para Constantin Héger, citado por Gaskell, em que ela diz: “Eu escreveria um livro e o dedicaria ao meu mestre de literatura, ao único mestre que já tive”. Não há nenhuma sombra de dúvida que O Professor, escrito logo após seu retorno de Bruxelas, foi inspirado em Héger, e a frase acima refere-se a esse livro.

O Professor foi escrito para Constantin Héger

No entanto, Gaskell fez parecer que era uma inocente gratidão de uma aluna a um mestre. Villette, seu último livro, foi uma reescrita de O Professor e, como sabemos, retrata sua estadia em Bruxelas e sua paixão por Héger e tudo que envolveu sua permanência naquele país.

De todas as centenas de cartas de Charlotte Brontë que sobreviveram, as quatro para Constantin Héger são as mais perturbadoras de se ler, pois ela claramente as escreveu em desespero e as destinou apenas aos olhos dele. “Héger foi a primeira pessoa fora de sua família a levar Brontë a sério como intelectual, e ela retornou de Bruxelas a Haworth, em 1844, convencida de que o forte vínculo que ela havia formado com ele continuaria em correspondência”, disse Harman.

No entanto, quanto mais carentes e ardentes suas cartas se tornavam, mais Héger recuava em longos silêncios, provocando uma espécie de pânico em Charlotte. Em janeiro de 1845, ela expressou seus sentimentos: “tudo o que sei é que não posso, que não me resignarei à perda total da amizade de meu mestre, preferiria sofrer as maiores dores corporais, pois meu coração está constantemente dilacerado por arrependimentos. Se meu mestre retirar completamente sua amizade de mim, ficarei absolutamente sem esperança; se ele me der um pouco de amizade, muito pouco, ficarei contente, feliz, teria um motivo para viver, para trabalhar. Monsieur, os pobres não precisam de muita coisa para viver, eles pedem apenas as migalhas de pão que caem da mesa dos homens ricos, mas se lhes são recusadas essas migalhas, eles morrem de fome. Não preciso de muito afeto daqueles que amo, eu não saberia o que fazer com uma amizade inteira e completa, não estou acostumada com isso, mas você mostrou algum interesse em mim nos dias passados, em que eu era sua aluna em Bruxelas, e me apego à preservação desse pequeno interesse, apego-me a ele como se me apegasse à vida”.

Talvez, não surpreendentemente, isso fez Héger se afastar ainda mais e, até o final do ano, ele deixou de responder as cartas de Charlotte. Em outra carta sobrevivente, escrita em 18 de novembro de 1845, Charlotte mostra as profundezas do sofrimento que isso lhe causou: “Sua última carta me sustentou, me alimentou por seis meses. Agora eu preciso de outra e você me dará, não porque você tem alguma amizade por mim, você não pode ter muita, mas porque você tem uma alma compassiva e porque gostaria de não condenar ninguém a padecer um longo sofrimento (…). Desde que eu ainda tenha a esperança de ouvir de você, eu posso ficar tranquila e não muito triste, mas um silêncio sombrio e prolongado parece avisar que meu mestre está se afastando de mim; dia após dia espero uma carta, e dia após dia a decepção me leva de novo a uma miséria esmagadora (…).

Vocês se lembram, na biografia de Gaskell, do quanto Charlotte ansiava pela hora em que o carteiro passaria? E quando ele não trazia nada, como ela entrava em depressão? Nenhuma palavra sobre cartas da Bélgica foi mencionada por Gaskell, mas tenho convicção de que a tristeza dela, grande parte, era devido à ausência de cartas de Constantin Héger.

Vamos olhar o outro lado. Vamos fazer uma visita a Bruxelas, à casa de Constantin Héger, ao pensionato administrado por sua esposa, Claire Zoé Parent, a Madame Héger. Quando a família de Héger doou essas cartas para a Biblioteca Britânica, em 1913, causou uma tremenda sensação: a revelação dos sentimentos apaixonados de Brontë por seu professor casado.

Contudo, não havia correspondência enviada por Héger. Segundo Eric Ruijssenaars, Charlotte enterrou as cartas de Héger, exatamente como Lucy Snowe enterrou as cartas do Dr. John em Villette. “Ela apenas trocou o nome dos personagens. Em Villette, ela enterrou simbolicamente as cartas de Constantin Héger. Quem sabe algum dia essas cartas não aparecerão? Se ela fez como as cartas de Lucy, colocando-as dentro de uma garrafa hermeticamente trancada, enterrando-as sob um carvalho, um dia elas ainda podem ser encontradas.

Eu não acredito que Charlotte as tenha queimado ou destruído”, opinou esperançosamente o pesquisador. Para alguns é fácil julgar os sentimentos de Charlotte Brontë como amplamente irracionais e não provocados. Claire Zoé, a esposa de Héger, disse à filha Louise que o marido jogara fora as cartas de Miss Brontë, mas que ela as resgatara da lixeira e as colara com tiras e fios de papel colados, e depois as preservara cuidadosamente em sua caixa de joias.

Sua razão para fazer isso foi ter algumas evidências para provar que o forte sentimento estava apenas de um lado (temendo o dano à reputação de sua escola). Enquanto isso, Charlotte se tornou uma escritora famosa, sob o pseudônimo de Currer Bell, estremecendo o mundo literário com Jane Eyre, seguido por Shirley, e Villette (um romance explicitamente modelado em suas experiências em Bruxelas com os Hégers).

Eric Ruijssenaars, autor de Charlotte Brontë’s Promised Land e The Pensionnat Revisited

Quando, em 1856, um ano após a morte de Charlotte, Elizabeth Gaskell foi falar com Héger para sua biografia, Constantin deu a ela as cartas, para que ela lesse, e copiou algumas passagens para Gaskell usar. Em 1869, um amigo da família atestou que Héger mostrou as cartas ao primo de sua esposa e “contou a história toda”.

Quando Charlotte Brontë se tornou cada vez mais famosa, nas últimas décadas do século dezenove, talvez Monsieur Héger reconsiderasse sua associação com ela e secretamente se orgulhasse disso. Claramente houve um tempo, antes que ela fosse famosa, que ela lhe pareceu nada além de um incômodo ou uma responsabilidade.

Sua última carta para ele, sem resposta, continha uma confissão humilhante de Charlotte sobre como ela se tornara “a escrava de um arrependimento, de uma memória, escrava de uma ideia dominante e fixa, que se tornara um tirano sobre sua mente”. A carta deve ter sido deixada aberta sobre a mesa de Héger em algum momento, pois na lateral da última página, a lápis, estão alguns endereços de comerciantes locais, um deles do sapateiro. Héger usara a declaração emocionante de Charlotte Brontë como rascunho.

Comprovadamente, Constantin Héger nunca amou Charlotte Brontë. Ninguém que amasse outra pessoa trataria uma carta de amor com tanto descuido e falta de zelo. A profunda admiração de Charlotte por seu antigo mestre não era segredo para Elizabeth Gaskell. Ela até mencionou na biografia a influência de Héger na escrita de Charlotte, mas suprimiu o que as cartas da família Héger deixaram dolorosamente claras: que os sentimentos de Brontë foram muito além da admiração ou gratidão comuns.

Elas expressaram uma intimidade que Charlotte esperava que se aprofundasse e crescesse depois que ela voltasse para casa, em Yorkshire. Depois, uma crescente irritação quando Héger a magoou com respostas formais e, finalmente, ficou desesperada e furiosa com o silêncio estratégico de Héger: “quando, dia após dia, aguardo uma carta”, ela escreveu a ele, em novembro de 1845, “e dia após dia a decepção me leva de novo a uma miséria avassaladora, quando o doce prazer de ver sua escrita e ler seu conselho foge de mim como uma visão vazia, então eu fico com febre, perco o apetite, e o sono afasta-se de mim”.

Em 1913, um médico e cientista belga chamado Paul Héger e sua irmã Louise doaram à Biblioteca Britânica quatro cartas que a romancista Charlotte Brontë havia escrito para seu falecido pai, Constantin Héger, entre 1844 e 1845, quando Constantin era uma figura bem conhecida em Bruxelas, e professor da escola de meninas pertencente e administrada por sua esposa Claire Zoé.

Louise Héger se perguntava o que fazer com esses documentos explosivos desde a morte de sua mãe, em 1890, quando herdara a caixa de joias em que foram guardados. Sua mãe a havia explicado os sentimentos “afetados” de Miss Brontë como “uma paixonite que tinha ido longe demais”, insistindo que o marido não fizera nada de errado. “Constantin”, relatara ela, tentou desencorajar a ex-aluna e rasgou as cartas depois de lê-las”.

Mas Claire Zoé, mais prudente, recuperou clandestinamente os pedaços da lata de lixo, reuniu-os com papel e linha gomados, e os guardou em sua caixa de joias. Eram as provas se um dia ela tivesse que defender a conduta de seu marido e a reputação de sua escola.

“A cautela de Madame Héger era compreensível: Brontë era uma inglesa pobre e simples, de 25 anos, quando a conheceram, mas alcançou a fama com Jane Eyre três anos depois de deixar o pensionato. Ela publicou sob um pseudônimo Currer Bell. No entanto, o segredo de sua identidade não foi mantido muito rigorosamente depois de 1849, e as pessoas que a conheciam e liam seus romances, percebiam fortemente que eram autobiográficos, como quebra-cabeças confessionais.

Essa tendência de Charlotte causou bastante falatório em Londres. Quando a segunda edição de Jane Eyre apareceu, com uma dedicatória a Thackeray (cuja esposa havia sido declarada insana alguns anos antes), houve especulações mortíferas sobre se Charlotte tinha sido sua governanta ou amante. Quando Shirley foi publicado, em 1849, os vizinhos dos Brontës pareciam tão interessados em encontrar colegas da vida real para as famílias representadas nele, quanto em ler o próprio livro.

O primeiro romance não publicado de Brontë, The Master, escrito entre 1844 e 1846 e publicado postumamente como O Professor, também usou sua experiência em Bruxelas como cenário de uma história de amor entre um professor britânico e sua aluna anglo-suíça, mas não havia nada nele que teria perturbado indevidamente os Hégers.

Ela foi muito mais explícita quando voltou ao mesmo material em Villette, que foi ambientado em um pensionato belga quase idêntico ao dos Hégers, com um herói (uma versão velada de Constantin) mantido longe de sua amada inglesa chamada Lucy, e uma diretora ardilosa (uma versão velada de Claire Zoé Parent, Madame Héger). Detalhes do edifício da escola, do jardim, da cidade, das peças e concertos que ela assistiu, até os mesmos programas de música, foram reproduzidos no romance, com rigor documental.

E há indícios de que os Hégers leram uma versão pirata de Villette, que circulava em Bruxelas. Certamente leram Jane Eyre e Shirley. Anos depois, notavelmente, leram O Professor. O fato comprovado é que Constantin recusou-se a responder suas cartas entre 1844 a 1845, mesmo depois de Charlotte implorar por qualquer resposta: “Proibir que eu lhe escreva, recusar-me a responder, isso será arrancar de mim a única alegria que eu tenho na terra, privar-me do meu último privilégio restante”.

Agora Brontë estava livre para dizer do que ela gostava, misturar fatos e fantasia e ser tão explícita ou injusta quanto ela quisesse, por trás da máscara da ficção. Villette era de fato “mais verdadeiroque a biografia”. H. Spielmann, o crítico que ajudou a família Héger a negociar com a Biblioteca Britânica em 1913 e que escreveu sobre as cartas no Times, ouvira uma história de que quando Charlotte Brontë deixou a Bélgica, em 1844, suas últimas palavras para Claire Zoé foram “Je me vengerai!” Spielmann achou que lembrava vividamente “aquela maravilhosa cena de despedida em Villette”, onde Paul Emanuel se vira contra Madame Beck e ordena que ela o deixe em paz com Lucy.

Mas, assim como a cena do romance é claramente uma peça primordial de realização de desejos, não se pode imaginar Charlotte proferindo palavras tão más como “eu vou me vingar!” à sua recente empregadora e “protetora”. Além disso, seus sentimentos turbulentos teriam sido muito claros para Madame; não haveria necessidade de dizer nada.

No início da década de 1850, quando ela escreveu Villette, Charlotte Brontë talvez não tivesse a intenção de se vingar, porém, o fez tanto quanto ou até mais que as palavras acima. Embora tentasse impedir que o romance fosse traduzido para o francês, ela devia saber que ficaria disponível em Bruxelas, e Madame Héger realmente possuía uma cópia pirata. O que ela sentiu ao ler a dissecção forense de Brontë sobre seu personagem, família, casa e escola não está registrado. Os Hégers perderam o direito de
objetar ou elogiar.

Alguns biógrafos tendem a acusar Constantin Héger de ter flertado com Charlotte, ele um homem casado, ou a pintaram como uma solteirona desordenada, cheia de celibato, capaz de destruir maldosamente um lar ou um homem que se recusava a fazer amor com ela. Mas afirmar qualquer uma das hipóteses é um erro. Harman, por outro lado, sugere um mal-entendido cultural. “Héger rotineiramente esbanjava em meio às pupilas um repertório de beijos, tapinhas e olhares afetuosos.

Brontë, criada em Yorkshire totalmente diferente, pode simplesmente ter interpretado mal a ternura
pseudoparental como um favor especial. Além disso, Madame Héger, longe de ser tão astuta e vingativa quanto seu avatar fictício, Madame Beck, era simplesmente uma empresária sensata que percebeu o dano à reputação de sua escola se surgissem fofocas sobre uma disputa entre seu marido e a simples e nervosa governanta inglesa. Denegrir o teor das cartas que Brontë escreveu pode não ter sido uma jogada cruel da parte dos Hégers, mas simplesmente uma autopreservação”.

Concluindo, em 1860, Elizabeth Gaskell, acompanhada de uma de suas filhas, fez sua última visita para ver Mr. Brontë, que naquele momento estava confinado na cama: “fomos levadas ao quarto dele, onde tudo estava delicadamente limpo e branco, e lá estava ele sentado na cama, em uma camisola limpa (…)”. Mr. Brontë, depois de sobreviver à esposa e aos filhos, morreu em 7 de junho de 1861, aos oitenta e quatro anos.

O romance anteriormente rejeitado de Charlotte Brontë, O Professor, foi publicado em 06 de junho de 1857, pela editora de George Smith. Smith viveu em Londres com sua mãe até 1854, quando se casou com Elizabeth Blakeway. Eles tiveram dois filhos e três filhas. Mary Taylor, amiga íntima de Charlotte Brontë, morreu em 01 de março de 1893. Ellen Nussey, a amiga mais querida de Charlotte Brontë, morreu aos 80 anos, em 26 de novembro de 1897.


A Vida de Charlotte Brontë está disponível no www.pedazuleditora.com.br em
formato físico e na Amazon, em e-book. Villette e Shirley também estão disponíveis no site da editora em formato físico e em e-book na Amazon. O Professor é exclusivo de www.clubedeleitorespedrazul.com.br.

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