Jane Austen era grande fã de Maria Edgeworth
Leonora é uma obra epistolar (cartas) publicada em 1806. Para falar dessa obra-prima, cheia de preciosidades (nunca separei tantos quotes maravilhosos), começarei com uma citação: “Casei-me cedo, na expectativa apaixonada de encontrar um coração adequado ao meu. Cruelmente desapontada, descobri apenas um marido”. No mínimo curiosa, não é?
A pessoa que escreveu o trecho acima é lady Olívia, uma convidada de lady Leonora para passar uma temporada em seu castelo.
O enredo do livro Leonora gira em torno da recém-casada lady Leonora e de sua decisão em trazer de volta para a Inglaterra uma mulher que havia sido exilada na França. A mulher, lady Olivia, é conhecida como coquete, e seu comportamento controverso, em relação ao casamento, a levou para o continente, onde cultivou uma sensibilidade aristocrática francesa, que existe além da moralidade convencional inglesa. Olivia está à procura do amor romântico; já, Leonora, defende o amor constante com base na paixão precoce que se transforma em profundo respeito e amizade. Com lady Olivia hospedada em seu castelo, lady Leonora terá a chance de mostrar que as pessoas que a criticam estão erradas enquanto corre o risco de perder seu bem mais precioso.
TRIÂNGULO AMOROSO
Em Leonora, Maria Edgeworth deixa de lado seus temas anglo-irlandeses e se volta à Inglaterra e à França. Traz o “bom senso” inglês, na pessoa de lady Leonora, guiada por sua mãe, uma duquesa. Do outro lado, está a “sensibilidade” francesa, representada por lady Olivia, uma mulher inglesa que viveu na França sob a orientação de sua amiga Gabrielle.
Durante toda a obra, Leonora defende Olivia de ser “atacada” e exilada da boa sociedade londrina. O comportamento de lady Olivia gera dúvidas sobre sua índole; a trama também nos faz questionar se Leonora corre algum risco ou não e se há indícios de que o próprio marido de Leonora tenha uma amante. A obra Leonora foi publicada durante as Guerras Napoleônicas, quando a Inglaterra (Reino Unido) temia a invasão francesa. Maria escreveu este livro num contexto romântico, quando ela mesma havia sido pedida em casamento.
JANE AUSTEN X MARIA EDGEWORTH
Quando Jane Austen publicou seu primeiro romance, Razão e Sensibilidade, em 1811, não havia dúvidas de quem era a principal romancista da época: Maria Edgeworth (1768 – 1849). Ela não foi apenas a escritora de ficção inglesa mais admirada, mas também a melhor remunerada e citada por influenciar a obra de Jane Austen. Edgeworth permaneceu como a maior romancista da Inglaterra até o início do século XIX. E mais do que isso: era uma celebridade literária e conhecida como ‘uma mulher de letras’. Incentivada e influenciada pelo pai, o político e intelectual Richard Lovell Edgeworth, amigo de Erasmus Darwin (pai de Charles Darwin) e de vários intelectuais da época, a autora herdaria o interesse dele pela educação, a crença no progresso e o amor pela literatura cosmopolita. Mas como seu pai desaprovava os romances e dizia que eram essencialmente frívolos, ela publicou em segredo, em 1800, o hilário Castelo Rackrent (já lançado pela Pedrazul e foi brinde no www.clubedeleitorespedrazul.com.br) inspirado no mordomo do pai, que está na lista dos 1001 livros para ler antes de morrer. Nas duas décadas seguintes a essa brilhante estreia, seguiu-se uma série de romances de sucesso, como Belinda e Leonora.
A obra Leonora, embora não publicada até 1806, foi iniciada três anos antes dessa data. As circunstâncias em que foi escrita foram, até certo ponto, únicas na vida de Maria Edgeworth, pois durante todo o tempo em que estava ocupada escrevendo a história, ela tinha em mente a proposta de casamento feita por Abraham Niclas Clenberg-Edelcrantz, um cavalheiro sueco (alguns biógrafos dizem que ele era um conde), de posição privilegiada, “de intelecto superior e brandos costumes”, como ela disse à sua tia em uma carta, parcialmente escrita antes da proposta e finalizada em um momento posterior.
UM AMOR RENUNCIADO
Foi em uma de suas viagens ao continente que Maria Edgeworth, aos 34 anos, conheceu monsieur Edelcrantz, um solteiro de 46 anos, que havia ido à França a pedido do rei sueco para examinar as mais recentes inovações da Europa. Ele a propôs em casamento em 3 de dezembro de 1802. Segundo Retratos de Mulheres Romancistas, no qual Nicky De Boom descreve a vida de Maria Edgeworth, Edelcrantz era um jovem encantador e o único homem por quem ela supostamente se apaixonou. “Edelcrantz era o secretário científico do rei da Suécia e pediu a Maria para se juntar a ele no referido país. Ela recusou, pois não podia abandonar sua família; sentia-se na obrigação de ficar com o pai e com os muitos irmãos”. Seu pai, Richard Lovell Edgeworth, casou-se quatro vezes e, dessas uniões, sobreviveram 22 filhos. A escolha pela numerosa família, por obrigação e responsabilidade familiar, pôs fim ao seu caso de amor. Segundo ainda Nicky De Boom, “Edelcrantz foi o único homem a quem Maria amou verdadeiramente; depois dele, ela nunca teve outro interesse amoroso”. As cartas publicadas por sua madrasta e pelo biógrafo Augustus Hare, embora bastante mutiladas e censuradas, constam do mesmo registro: Maria o amava muito e não superou o caso rapidamente.
Essa parece ter sido a única vez que essa bondosa e sensata mulher foi pedida em casamento. Mas Leonora, o livro que agora publicamos no Brasil, foi escrito, em grande parte, visando à aprovação de Edelcrantz, apesar de ela nunca ter sabido com certeza se ele o leu ou não. Contudo, acreditamos que sim, pois há registros de que ele era apaixonado por ela e acompanhava seu trabalho como autora.
O fato de Maria Edgeworth ter escrito Leonora em homenagem àquela viagem, na qual ela conheceu Edelcrantz, e supostamente em homenagem a ele – segundo o editor inglês que publicou o original o qual traduzimos – “mostra algumas das boas qualidades que ela possuía, já que, embora tenha o recusado, ainda assim, pelo respeito e pela estima que tinha por ele, concebeu Leonora em sua homenagem […]”.
Maria era defensora do amor correspondido. Em uma carta à sua prima, Sophy Ruxton, ela escreveu: “sem dúvida que minha felicidade aumentaria muito em uma união com um homem adequado […], mas o casamento tem que ser mutuamente desejado, e o amor tem que ser correspondido, como o amor entre Glorvina e Horatio […]”, do livro The Wild Irish Girl (A Garota Irlandesa Selvagem), de lady Sydney Morgan. Ela também escreveu em Castle Rackrent, sua primeira publicação de 1888, que “um casamento por amor era fundamental para a felicidade”.
Todos os casamentos de seu pai provavelmente também tiveram um impacto em sua vida amorosa. Talvez ela tenha se tornado um pouco cética depois de ver tantos casamentos, alguns deles sem esperar o período aceitável de luto. Ela parecia ter medo de amar. Nunca se deixava aproximar de ninguém e vivia principalmente para cuidar dos irmãos.
Maria permaneceu firmemente enraizada em Edgeworthstown, nas terras da família, na Irlanda, e seus correspondentes e amigos incluíam Sir Walter Scott, Elizabeth Gaskell, Laetitia Barbauld, Elizabeth Hamilton e, supostamente, chegou a responder uma carta de Jane Austen.
Maria Edgeworth era um ídolo para Jane Austen. Austen valorizava tanto a boa opinião de sua colega romancista que, em 1816, pediu ao seu editor que enviasse um precioso exemplar de apresentação de Emma para Edgeworth, na Irlanda, presumivelmente na esperança de que a famosa Maria Edgeworth ficasse impressionada. Apesar de toda a relativa obscuridade de Jane Austen como romancista em vida, Maria Edgeworth estava ciente de seus romances, ao menos já em 1814, quando leu Mansfield Park logo após a publicação, considerando-o “como a vida real e muito divertido”. Edgeworth, no entanto, não foi muito elogiosa a respeito de Emma.
Esperamos que Austen nunca tenha tomado conhecimento da opinião de Edgeworth sobre seu trabalho, uma vez que, depois de ler o primeiro dos três volumes, Edgeworth parece não ter prosseguido com a leitura. Porém, com o passar do tempo, embora não saibamos se ela mudou de ideia sobre a A Abadia de Northanger – obra que ela também fez críticas –, sua opinião sobre Emma mudou. Em 1838, quando ela estava entrando na casa dos 70 anos de idade e não mais escrevendo ficção, quando a própria Austen já estava morta, ela registrou que um de seus parentes lera a edição completa de Emma e de Orgulho e Preconceito em voz alta para o grupo familiar à noite; e então disse: “Eu gostei deles mais do que nunca!”.
Portanto, gostamos de acreditar que o momento inicial em que ela lera Emma, ela não estava em seus melhores dias. E, na maturidade, quando sabia apreciar uma obra-prima, deu a ela o devido crédito. Deixaremos registrado aqui um trecho de um dos biógrafos de Maria Edgeworth, John Downman, numa publicação de 1807, a respeito de sua opinião inicial sobre Emma, de Jane Austen
“[…] não havia nenhuma história, exceto que a senhorita Emma descobriu que o homem que ela projetou como o amor de Harriet era um admirador dela, e ele ficou ofendido por ter sido recusado por Emma […]”. Como mencionamos, como confessou a um parente próximo, ela ficou, infelizmente, igualmente desapontada com A Abadia de Northanger, quando o lera alguns anos depois, embora tivesse ficado muito contente com os elogios a si mesma. Ela criticou o comportamento do general Tilney ao enviar abruptamente Catherine Morland para casa sem um criado ou as civilidades comuns que qualquer homem, para não dizer cavalheiro, teria demonstrado. Por outro lado, ela elogiou muito Persuasão. “Tudo que se relaciona com a pobre Anne e seus amores é extremamente interessante e natural. O amor pelo cavalheiro admiravelmente bem-desenhado, bem escrito, de modo que sentimos que é bastante real […] E o primeiro encontro, após sua longa separação, não foi admiravelmente bem-construído?”. Esses e muitos outros elogios foram ditos por ela em relação a Persuasão, de Jane Austen.
Durante a vida de Maria Edgeworth, e por muitos anos após sua morte, Jane Austen foi totalmente ofuscada como romancista por ela. Ainda em 1870, quando a biografia Uma Memória de Jane Austen, escrita pelo seu sobrinho James Edward Austen Leigh, foi lançada, ele escreveu que se os vizinhos de Austen soubessem “que nós, em nossos pensamentos secretos, a classificávamos como Maria Edgeworth, eles teriam considerado isso um exemplo divertido de presunção familiar”. É interessante descobrir que entre as duas escritoras havia, no fim das contas, respeito e admiração mútuas. E é uma das maiores ironias da literatura que, a partir de um século e meio depois, a memória e a reputação das duas escritoras se inverteram completamente, pois na modernidade é por meio de Jane Austen que muitos leitores reconhecem a obra de Maria Edgeworth, autora que ela tanto admirava!
O livro Leonora é exclusivo do www.clubedeleitorespedrazul.com.br. Foi escrito inspirado nas experiências de uma viagem que a autora fez em 1802, uma excursão pela região central da Inglaterra e pela Europa Continental, detendo-se mais tempo na França, onde ela conheceu, além de vários intelectuais de Paris, o homem que a inspirou.
Continua na introdução do livro Leonora.