Por Claire Scorzi
Publicado pela primeira vez em 1782, Cecilia foi o segundo romance de Frances Burney, após uma incursão da autora – que acabou não se realizando – no teatro. Cecilia é, assim, o produto da mente de Burney quando muito provavelmente ela ainda estaria frustrada e magoada por não ter conseguido levar ao palco a peça que havia escrito. Preconceitos da época: mulheres dramaturgas não eram bem-vistas, sua escrita “para o palco” considerada imodesta para um sexo que deveria sempre pautar-se por um comportamento acima da menor ameaça de vulgaridade ou exibicionismo. Um homem poderia ser ambicioso e expansivo; uma mulher, não.
Parece que Cecilia poderia ser lido sob essa ótica; nele, vemos uma heroína que está cercada de ameaças perceptíveis e não perceptíveis. Algumas, ela vê, ou vai aprendendo a ver; outras, não enxerga quase que até o desfecho (e talvez mesmo depois dele, mas o leitor sim; porém, isso é outra história).
HERDEIRA
Cecilia é uma jovem herdeira que tem de atender determinadas condições do tio para usufruir de sua herança. De início, apesar dessas condições, ela parece livre, coberta com a capa que o dinheiro lhe dá; mas não é bem assim. As ameaças a rodeiam – de caça dotes, de libertinos, de tutores irresponsáveis (nenhum dos três de bom caráter), de equívocos, e, em grande parte, pela sua própria inexperiência. Os movimentos do coração de Cecilia são sempre bons – de generosidade, de compaixão, de desejo de expiar uma falta sua (em geral muito menor do que ela supõe). Porém, ela é frequentemente traída por sua inocência e desconhecimento do mundo e das pessoas. Ela adquire sabedoria a um alto preço: o do extremo sofrimento.
INSPIRAÇÃO PARA DICKENS
Assim, bondade e compaixão sem sabedoria são armas que se voltam contra ela; seu coração inocente é pisado e sobrecarregado; sua capacidade de sofrer e de lutar levado a um clímax onde Frances Burney reúne o trágico e o patético, que nos mostram onde Dickens deve ter buscado inspiração para as páginas igualmente trágicas e patéticas que pontuam alguns de seus livros, como Oliver Twist, A Velha Loja de Curiosidades ou ainda o doloroso O Homem e o Espectro.
Há uma riqueza de personagens secundários que outra vez veremos em Dickens, e Burney os utiliza para criar arcos e possibilidades na trama, além de discutir mesmo que por alusão – o olhar masculino sobre a sua escrita parece sempre presente, e sabemos como a opinião de alguns deles era central para ela – problemas e temas caros às mulheres.
Escolher o companheiro de vida. O que deve ser uma esposa (o papel submisso e imaturo de Mrs. Harrel, com certeza, não é um bom exemplo, e não a poupou de infelicidades e tragédias). Em que consiste a benignidade e o que já é extravagância. Ser solteira ou ser casada. Amizades boas e amizades más. E é impressionante o espaço dado mesmo à questão do dinheiro; em Cecilia, quase toda a problemática possível quanto ao dinheiro é explorada.
PERSONAGEM QUE SE DESTACA
Para dar um alívio cômico, ou ainda para discutir seus temas sem se preocupar com o malfadado “olhar masculino por cima do ombro”, Frances Burney cria uma personagem que foi a minha delícia e de um amigo que também lia o romance: Lady Honoria.
Além de ridicularizar Mr. Delville – e francamente, que outra coisa é Mr. Delville senão ridículo? – e toda a sua pompa, Lady Honoria é também autora do comentário quiçá mais ferino do romance, quando diz que uma moça solteira não está livre de ser vigiada o tempo todo, e que um marido é o que ela necessita para ter alguma liberdade; basta não o amar e escolher um marido que ela possa manobrar.
Esse comentário hilariante é feito no último capítulo do livro. Talvez, uma vingança modesta de Burney?
Este livro pode ser encontrado, em capa dura, com 940 páginas, no site da Editora Pedrazul!